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quarta-feira, 23 de março de 2016

Conto - Os Watsons

Ele ajeita o bigodinho antes de me abordar com a autoconfiança dos veteranos:
– Boa noite, meu camarada.
– Boa noite – limito-me a responder com um sorriso tímido.
O homenzinho sorri de volta.
– Seja bem-vindo ao clube. Meu nome é Watson.
– Que coincidência! – exclamo. – Eu também me chamo Watson.
– Ora, se você não fosse um de nós, não estaria aqui – ele responde com naturalidade. – Olhe à sua volta. Observe os sujeitos espalhados pelo salão, que bebericam coquetéis enquanto jogam conversa fora. Todos são Watsons, sem exceção.
– Eles se chamam Watson, também?
O meu homônimo ri baixinho, sem fazer alarde.
– Bem, mais ou menos. Watson, aqui, é um nome genérico. Significa que nós todos somos personagens secundários, os parceiros fiéis que interagem com o protagonista, servindo-lhe de “escada” para que mostre o seu brilho. Alguns nos chamam de coadjuvantes. Outros, de personagens secundários.
Olho ao redor com ar curioso.
– Quer dizer... – Aponto para uma ruiva deslumbrante, que beberica champanhe enquanto flerta com um homem de smoking – Ela também é um Watson?
– Completamente. O que seria mais Watson do que uma femme fatale? Oh, admito que senhoritas puras e ingênuas também tiveram a sua época, mas uma dama bela e perigosa é atemporal. Está sempre bem colocada no nosso ranking.
– E o homem com ela...
– Um Watson até a raiz dos seus cabelos com brilhantina. Um dândi conquistador, um quase-vilão, perfeito para rivalizar com o herói em comédias românticas. Mas, coitado, é um personagem ultrapassado. Não se pode comparar um tipo desses com vampiros, garotos bruxos, elfos, magos e zumbis que estão na moda. – Ele abanou a cabeça com ar de pesar. – Mesmo esses últimos, você sabe, já mostram sinais de decadência. Infelizmente, uma boa posição no ranking de Watsons é um estado passageiro, meu amigo. Basta o surgimento de um novo sucesso na TV, no cinema ou até em games. E, zás! Um novo grupo de Watsons aparece, e os antigos vão caindo em esquecimento.
Ele dirige o seu olhar para a parte mais iluminada do salão. Vejo um grupo de garotos com cara de nerd, cientistas, agentes de ternos impecáveis, deuses menores de origens variadas, policiais, jornalistas, muitas mulheres bonitas e um mordomo com ar esperto.
– São os Watsons de super-heróis – diz o homenzinho. – Estão fazendo sucesso ultimamente. Voltaram muito bem, pois têm, como se diz por aí, mais “atitude” do que os seus antecessores. Mas, no fundo, são apenas Watsons...
Em meio a outro grupo, reconheço um robô de forma humanoide com corpo reluzente de metal dourado. Ao seu lado, desliza outro, mais baixo, que solta bips e chiados. O rapaz de brilhantina abre caminho e deixa-os passar. E o mesmo fazem os demais Watsons menos cotados. A ruiva sensual agora dirige suas atenções para um esférico robozinho, acariciando a sua cabeça de lata, enquanto ele responde com ruídos engraçados, como um pet de metal.
– Aquela saga espacial voltou, você sabe – comenta o meu amigo, dando de ombros. – E a ruiva sabe onde amarrar seu burro...
O meu interlocutor, enquanto fala, conduz-me pelo braço até um sofá. No trajeto, faz sinal para o garçom, que se apressa em nos trazer uma bebida. Lanço um olhar interrogativo, e o meu companheiro se antecipa à pergunta:
– Não, não. O garçom não é um Watson, é só um figurante. Não nos confunda, por favor.
Beberico o meu drinque. Muito bom, por sinal.
– Os Watsons são bem tratados, pelo menos quanto à bebida – comento.
– Ora, meu caro, a sua bebida é de primeira graças a mim, pois é meu convidado. Você acha que todos aqui bebem uísque escocês? Aquele dândi está consumindo um similar paraguaio e a ruiva faz pose com um espumante nacional.
– Então existe uma diferença no tratamento dos Watsons.
– Claro! Aqui, como em todo lugar, os mais valorizados têm regalias.
– Então você deve ser um Watson importante!
O homenzinho lança um olhar condescendente e responde:
– Não sou um Watson, meu camarada. Eu sou “o” Watson. Pode me chamar de doutor Watson, se lhe aprouver. Sou o coadjuvante mais famoso, marcante e importante. E, embora tenha amargado certo ostracismo por algumas décadas, ouso dizer que o vento da fortuna virou-se a meu favor nos últimos anos. Sou um personagem amado num seriado da BBC, tornei-me bonitão e heroico em filmes blockbuster e até me transformaram em uma beldade asiática num seriado recente. E, note, todos eles foram um sucesso!
Não deixo de me sentir profundamente emocionado. Estava diante do próprio doutor Watson, o companheiro inseparável do célebre Sherlock Holmes. Enquanto procuro palavras adequadas para expressar a minha admiração, o garçom retorna com mais uma dose de bebida. Watson arregala os olhos e exclama, apontando para a garrafa de uísque:
– Mas... O que é isso?
O garçom-figurante parece muito nervoso. Mas responde:
– É um uísque paraguaio, senhor.
– O quê? Como ousa? – brada o meu companheiro. – Eu sou doutor Watson, o mais célebre dos coadjuvantes! Sou o símbolo maior da arte watsoniana de acompanhamento e auxílio a protagonistas e heróis! Exijo o meu uísque escocês de volta!
O garçom, sentindo-se cada vez mais seguro, declara:
– O senhor acaba de perder a sua posição. E, na sua atual colocação, o máximo que posso lhe trazer é isto aqui.
– Eu... perdi a minha posição? Mas como? Surgiu um novo fenômeno de bilheteria? O ator que faz o meu papel se envolveu em algum escândalo bizarro?
– Elementar, doutor Watson. – O garçom sorri, vitorioso, enquanto coloca a bebida nas mãos trêmulas do doutor. – O senhor acaba de mudar de nível, passando para o grau dos Sherlocks, ao se tornar o personagem principal deste conto.
Watson e eu nos entreolhamos. Sim, havia lógica na revelação do garçom. Durante o brevíssimo instante em que este conto foi lido, o inefável doutor foi o protagonista, enquanto eu cumpria a função de seu Watson.
O meu companheiro de conversa desaba no sofá, arrasado.
– Oh... Mas que desgraça!
O garçom passa às minhas mãos o copo do uísque paraguaio.
– Muitíssimo obrigado por terem me tornado um Watson, senhores. Como figurante, eu jamais teria a felicidade de dizer tais falas! – Ele sacode a mão do meu amigo, efusivo. – Meus sinceros parabéns pela promoção, senhor!
E foi-se, assoviando alegremente.
– Mas... – volto-me para o meu amigo. – Se você é um protagonista, deveria ter um tratamento ainda melhor!
O bom doutor me olha com os olhos cheios de lágrimas:
– O que você acha, meu camarada? – Fungou, procurando um lenço nos bolsos. – Eu já vivi a glória. Fui representado pelos melhores atores de várias gerações. Frequentei a cabeceira de futuros gênios da comunicação e criatividade. Fui um mito, um ícone, uma inspiração. Você acha, sinceramente, que mereço mais por ser o protagonista deste conto desconhecido? Responda, homem, responda! O que é melhor, ser o maior dos Watsons ou um dos bilhões de Sherlocks anônimos que nascem a cada instante? E tudo isso aconteceu graças às suas perguntas irritantes!
Nada mais há para ser dito. Noto que a nossa breve amizade chegou ao fim. Levanto-me em silêncio e encaminho-me para a saída.
Enquanto pego o meu chapéu e a bengala, posso sentir os olhares de piedade dos Watsons sobre o pobre doutor em desgraça. Abro a porta da rua e sorrio, deliciado.
Ser um Moriarty vale a pena... Mesmo num conto desconhecido!

Conto e ilustração por Giulia Moon.

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